quinta-feira, 26 de maio de 2011

O PERMANENTE E O PROVISÓRIO



O casamento é permanente, o namoro é provisório. O amor é permanente, a paixão é provisória. Uma profissão é permanente, um emprego é provisório. Um endereço é permanente, uma estada é provisória. A arte é permanente, a tendência é provisória.
De acordo? Nem eu.
Um casamento que dura 20 anos é provisório. Não somos repetições de nós mesmos, a cada instante somos surpreendidos por novos pensamentos que nos chegam através da leitura, do cinema, da meditação. O que eu fui ontem e anteontem já é memória. Escada vencida degrau por degrau, mas o que eu sou neste momento é o que conta, minhas decisões valem para agora, hoje é o meu dia, nenhum outro.
Amor permanente... Como a gente se agarra nessa ilusão. Pois se nem o amor por nós mesmos resiste tanto tempo sem umas reavaliações. Por isso nos transformamos, temos sede de aprender, de nos melhorar, de deixar pra trás nossos imensuráveis erros, nossos achaques, nossos preconceitos, tudo o que fizemos achando que era certo e hoje condenamos. O amor se infiltra dentro de nós, mas seguem todos em movimento: você, o amor da sua vida e o que vocês sentem. Tudo pulsando independentemente, e passíveis de se desgarrar um do outro.
Um endereço não é pra sempre, uma profissão pode ser jogada pela janela, a amizade é fortíssima até encontrar uma desilusão ainda mais forte, a arte passa por ciclos, e se tudo isso é soberano e tem valor supremo, é porque hoje acreditamos nisso, hoje somos superiores ao passado e ao futuro, agora é que nossa crença se estabiliza, a necessidade se manifesta, a vontade se impõe - até que o tempo vire.
Faço menos planos e cultivo menos recordações. Não guardo muitos papéis, nem adianto muito o serviço. Movimento-me num espaço cujo tamanho me serve, alcanço seus limites com as mãos, é nele que me instalo e vivo com a integridade possível. Canso menos, me divirto mais e não perco a fé por constatar o óbvio: tudo é provisório, inclusive nós.


Do livro Coisas de Mim, de Martha Medeiros.

(p.s. Crônicas perfeitasss!)

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Que sorte quando a gente sabe com quem está lidando: mesmo que venha a desamá-lo um dia, tudo o que foi construído se manterá de pé.


Quando a gente conhece uma pessoa, construímos uma imagem dela. Esta imagem tem a ver com o que ela é de verdade, tem a ver com as nossas expectativas e tem muito a ver com o que ela "vende" de si mesma. É pelo resultado disso tudo que nos apaixonamos. Se esta pessoa for bem parecida com a imagem que projetou em nós, desfazer-se deste amor, mais tarde, não será tão penoso. Restará a saudade, talvez uma pequena mágoa, mas nada que resista por muito tempo. No final, sobreviverão as boas lembranças. Mas se esta pessoa "inventou" um personagem e você caiu na arapuca, aí, somado à dor da separação, virá um processo mais lento e sofrido: a de desconstrução daquela pessoa que você achou que era real.

Trecho da crônica Desconstruções, de Martha Medeiros.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O amor que a vida traz


Você gostaria de ter um amor que fosse estável, divertido e fácil. O objeto desse amor nem precisaria ser muito bonito, nem rico. Uma pessoa bacana, que te adorasse e fosse parceira já estaria mais do que bom. Você quer um amor assim. É pedir muito? Ora, você está sendo até modesto.

O problema é que todos imaginam um amor a seu modo, um amor cheio de pré-requisitos. Ao analisar o currículo do candidato, alguns itens de fábrica não podem faltar. O seu amor tem que gostar um pouco de cinema, nem que seja pra assistir em casa, no DVD. E seria bom que gostasse dos seus amigos. E precisa ter um emprego seguro. Bom humor, sim, bom humor não pode faltar. Não é querer demais, é? Ninguém está pedindo um piloto de Fórmula 1 ou uma capa da Playboy. Basta um amor desses fabricados em série, não pode ser tão impossível.

Aí a vida bate à sua porta e entrega um amor que não tem nada a ver com o que você queria. Será que se enganou de endereço? Não. Está tudo certinho, confira o protocolo. Esse é o amor que lhe cabe. É seu. Se não gostar, pode colocar no lixo, pode passar adiante, faça o que quiser. A entrega está feita, assine aqui, adeus.

E agora está você aí, com esse amor que não estava nos planos. Um amor que não é a sua cara, que não lembra em nada o amor solicitado. E, por isso mesmo, um amor que deixa você em pânico e em êxtase. Tudo diferente do que você um dia supôs, um amor que te perturba e te exige, que não aceita as regras que você estipulou.


Um amor que a cada manhã faz você pensar que de hoje não passa, mas a noite chega e esse amor perdura, um amor movido por discussões que você não esperava enfrentar e por beijos para os quais nem imaginava ter tanto fôlego. Um amor errado como aqueles que dizem que devemos aproveitar enquanto não encontramos o certo, e o certo era aquele outro que você havia encomendado, mas a vida, que é péssima em atender pedidos, lhe trouxe esse e conforme-se, saboreie esse presente, esse suspense, esse nonsense, esse amor que você desconfia que nem lhe pertence.

Aquele amor em formato de coração, amor com licor, amor de caixinha, não apareceu. Olhe pra você vivendo esse amor a granel, esse amor escarcéu, não era bem isso que você desejava, mas é o amor que lhe foi destinado, o amor que começou por telefone, o amor que começou pela internet, que esbarrou em você no elevador, o amor que era pra não vingar e virou compromisso, olha você tendo que explicar o que não se explica, você nunca havia se dado conta de que amor não se pede, não se especifica, não se experimenta em loja – ah, este me serviu direitinho!


Aquele amor discretinho por você tão sonhado vai parar na porta de alguém para o qual um amor discretinho costuma ser desprezado, repare em como a vida é astuciosa. Assim são as entregas de amor, todas como se viessem num caminhão da sorte, uma promoção de domingo, um prêmio buzinando lá fora, mesmo você nunca tendo apostado. Aquele amor que você encomendou não veio, parabéns! Aproveite o que lhe foi entregue por sorteio.

domingo, 8 de maio de 2011

Não há personagem mais rico do que as mães.


(...) Se sua mãe é meio avoada e não enxerga um palmo na frente do nariz, ame-a, simplesmente. Mas se ela consegue ir além da página 2, não só a ame como a escute. Confie no seu sexto sentido, preste atenção no que ela diz nas entrelinhas, respeite sua vivência, acredite no quanto ela lhe conhece e lhe quer bem, aprenda com sua sensatez, aceite seus palpites. Não é preciso assinar embaixo de tudo o que ela diz, mas, ainda assim, leve em consideração suas dicas e impressões. Radar de mãe não se despreza.

Martha Medeiros

terça-feira, 3 de maio de 2011

A Mulher Boazinha


Qual o elogio que uma mulher adora receber?


Bom, se você está com tempo, pode-se listar aqui uns setecentos: mulher adora que verbalizem seus atributos, sejam eles físicos ou morais. Diga que ela é uma mulher inteligente, e ela irá com a sua cara. Diga que ela tem um ótimo caráter e um corpo que é uma provocação,e ela decorará o seu número .Fale do seu olhar, da sua pele, do seu sorriso, da sua presença de espírito,da sua aura de mistério, de como ela tem classe: ela achará você muito observador e lhe dará uma cópia da chave de casa. Mas não pense que o jogo está ganho: manter o cargo vai depender da sua perspicácia para encontrar novas qualidades nessa mulher poderosa, absoluta. Diga que ela cozinha melhor que a sua mãe,que ela tem uma voz que faz você pensar obscenidades,que ela é um avião no mundo dos negócios. Fale sobre sua competência, seu senso de oportunidade,seu bom gosto musical. Agora quer ver o mundo cair? Diga que ela é muito boazinha. Descreva aí uma mulher boazinha. Voz fina, roupas pastel, calçados rente ao chão. Aceita encomendas de doces, contribui para a igreja,cuida dos sobrinhos nos finais de semana. Disponível, serena, previsível, nunca foi vista negando um favor.Nunca teve um chilique. Nunca colocou os pés num show de rock. É queridinha. Pequeninha. Educadinha. Enfim, uma mulher boazinha. Fomos boazinhas por séculos. Engolíamos tudo e fingíamos não ver nada, ceguinhas. Vivíamos no nosso mundinho, rodeadas de panelinhas e nenezinhos. A vida feminina era esse frege: bordados, paredes brancas,crucifixo em cima da cama, tudo certinho. Passamos um tempão assim, comportadinhas, enquanto íamos alimentando um desejo incontrolável de virar a mesa. Quietinhas, mas inquietas. Até que chegou o dia em que deixamos de ser as coitadinhas. Ninguém mais fala em namoradinhas do Brasil: somos atrizes, estrelas, profissionais. Adolescentes não são mais brotinhos: são garotas da geração teen. Ser chamada de patricinha é ofensa mortal. Pitchulinha é coisa de retardada. Quem gosta de diminutivos, definha. Ser boazinha não tem nada a ver com ser generosa. Ser boa é bom, ser boazinha é péssimo. As boazinhas não têm defeitos. Não têm atitude. Conformam-se com a coadjuvância. PH neutro. Ser chamada de boazinha, mesmo com a melhor das intenções, é o pior dos desaforos. Mulheres bacanas, complicadas, batalhadoras, persistentes, ciumentas, apressadas, é isso que somos hoje. Merecemos adjetivos velozes, produtivos, enigmáticos.



- As “inhas” não moram mais aqui. Foram para o espaço, sozinhas.

Martha Medeiros